Nasci no dia 3 de abril de 1980 numa manhã , segundo minha mãe,
nublada com nuvens que formavam verdadeiras figuras monstruosas que pareciam
quere engolir o barraco onde minha mãe gritava em dor. E exatamente
às dez horas eu nasci, soltando o meu primeiro choro, e talvez, para
quem presenciava o meu nascimento, as minhas últimas lágrimas
puras, sem o sofrimento da dor e da fome que viriam rolar do meu rosto.
Minha mãe saía todos os dias às quatro horas da manhã
para o lixão e me deixava com os meus dois irmãos mais velhos,
para o café um pouco de chá com um pedaço de pão
duro, que pedia na padaria quando voltava para casa, o almoço a Deus
pertencia, pois quando dávamos sorte que algum dos vizinhos dividissem
o pouco que tinham era verdadeiramente um dia abençoado. Meus irmãos
sentavam-se na porta do barraco para olhar as outras crianças que brincavam
e passavam conversando e cantarolando para a escola, um privilégio
que era de poucos no lugar onde morávamos.
Tudo que tínhamos era um fogão a gás velho com enchimento
de barro – que a maioria das vezes estava sempre apagado, apenas com
as cinzas ou, quando aceso, esquentando água – duas cadeiras
onde nos acomodávamos para passar a noite e algumas vasilhas plásticas
com meia dúzia de panelas velhas e uma lata ao lado do barraco que
nossa mãe todos os dias antes de sair descia a ladeira para encher,
numa bica onde todos se abasteciam.
As noites eram frias e a única alegria que eu tinha era quando em noite
de lua cheia olhava o clarão que iluminava todo o barraco. Numa tarde
em que o dia já se fazia frio e triste começou a chover, a chuva
a cada hora engrossava, e o vento soprava ferozmente como se tivesse com um
ódio terrível de todos, querendo devorar-nos e a tudo que nos
rodeava. Começou uma enxurrada e a água a cada minuto rolava
violenta, vimos os pedaços de madeira com as telha de “eternit’’
do nosso barraco acompanharem as águas com a mesma intensidade com
que rolavam morro abaixo. E nós, os três agarrados como se fõssemos
bichinhos com medo de toda aquela intempérie da natureza, em cima de
uma laje pequena onde também se agrupavam alguma pessoas.
Pelo excesso de peso a laje quebrou-se e caímos os três. Os homens
nos salvaram, mas meu irmão mais velho não teve a mesma sorte:
a enxurrada o carregou e no outro dia seu corpo foi encontrado no bueiro junto
com os destroços.
Uma tristeza invadiu a todos, minha mãe chorava e blasfemava contra
a Deus. Agora estávamos na rua sem sabermos pelo menos que direção
tomar. Eu não sabia se sentia pena do meu irmão por estar morto
ou de nós por estarmos vivos, pois a partir daquele dia passei a considerar
a morte um descanso.
Vagamos pela rua da cidade com frio e fome, minha mãe não suportou
a perda do meu irmão e a forme e enlouqueceu. Perdemos ela de vista.
Passaram-se alguns meses e em um dos becos do quarteirão onde nos abrigávamos,
encontrei o corpo da minha mãe, que tinha sido violentamente espancado
e estuprado. Para mim Deus deixou de existir naquele momento, chorei e senti
náuseas do mundo. Eu estava sozinho no mundo cruel e insano.
Todos os dias saia para vender amendoin nos semáforos, era dali que
tirava o pão para permanecer com os pés no chão.
Às vezes, quando batia três horas a barriga roncava e eu olhava
no pequeno saquinho onde carregava as moedas e não tinha nada. Eu me
entristecia e ia pedi, ouvia uma frase quem era rotineira: “ Não
DÊ NADA A ESTE NEGRINHO. ISSO É MARGINAL FILHO DA PUTA...’’
Aquilo era como uma clava em meu coração. A cada rejeição
uma revolta e aquilo foi acumulando pouco a pouco e cada vez de maneira mais
e mais odiosa.
Meu único familiar que sobrou desapareceu, e eu nunca mais tive notícias,
e a minha família passou a ser mendigos e as crianças que se
encontravam na mesma situação. Os grandes viadutos nos protegiam
das chuvas e do inverno gelado da cidade de São Paulo.
Nas ruas aprendi o alfabeto da marginalização , do vandalismo
e tudo aquilo que o sofrimento e o desespero têm a nos oferecer. Foi
assim que mim tornei um marginal impiedoso, ladrão, traficante e consumidor
de drogas e até assasino. Foi essa formação e, a educação
que a sociedade e o sistema deram-me por ser pobre e negro.
Quando completei 14 anos já tinha feito o meu primeiro assalto à
mão armada. Era um dia de Domingo e como sempre o movimento era grande,
pessoas e carros passavam indo e vindo. Estava eu e mais dois colegas, a vitima
um dentista que todos os dias saía para almoçar no restaurante
que havia atrás do seu escritório. Nos começamos a ficar
de olho nele. Quando bateu 12h30min ele desceu e nós saímos
em seu encalço, percebeu que estava sendo seguido, mais já era
tarde demais, quando se deu conta estávamos apontando uma arma para
sua cabeça. Nesse dia tiramos tudo, deixamos a vitima só de
cueca, roubamos carteira, aliança, relógio, as roupas e foi
uma festa. Com o dinheiro fizemos um lanche e o resto trocamos por pedra de
craque. Antes só tinha usado maconha e cola.
Se não acreditava em Deus e o céu para mim era inexistente,
naquele dia visitei o centro do inferno, e o diabo todo soberano era aquela
pedra que eu fumava. Não cheguei a viciar-me pois a sensação
que a droga causou não foi de estar no conto de fadas.
Continuei fazendo pequenos roubos e passando drogas. No envolvimento com os
traficantes entrei numa briga de gangues e acabei levando um tiro na perna.
Fui preso com 17 anos e agora estou aqui no que eles chamam de Instituição
de Regeneração para menores. Mas para quem convive o dia-a-
dia, a realidade é completamente outra, e esse é o verdadeiro
inferno. Se as ruas foram para mim a escola do crime, recebi aqui a pós
graduação. Só existe uma diferença : nas ruas
erramos livres, aqui somos trancados. Os instrutores são marginais
e criminosos, menores com nível em crimes, e aqueles que se dizem a
lei.